Crítica | Festival

No Cemitério do Cinema

Aqui jaz a arte

(Au cimetière de la pellicule, FRA, SEN, GUI, ARS, 2023)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Thierno Souleymane Diallo
  • Roteiro: Thierno Souleymane Diallo
  • Duração: 90 minutos

Mouramani. Um filme perdido da Guiné, e não apenas “um filme”, mas o considerado primeiro filme africano oficial. 1953. Onde está esse filme? Dirigido por Mandou Touré, Mouramani está perdido em sua terra, um lugar onde o cinema como conhecemos está fadado a desaparecer. No Cemitério do Cinema, dirigido por Thierno Souleymane Diallo, está na competição internacional do Olhar de Cinema e têm muito a nos dizer a respeito das muitas definições de cinema que temos acesso – e, nesse caso específico, acesso é algo a ser gradativamente perdido. Tudo está se esvaindo diante de uma comodidade que se pretende diminuir as divisões elitizadas ao acesso à produção, mas que roem delicadamente o conceito de experiência cinematográfica. 

Essa discussão que se abre a partir de No Cemitério do Cinema é uma síntese de uma espécie de sepultamento em si, de uma experiência prestes a deixar de existir em um lugar, mas que sistematicamente está perdendo a relevância em todos os outros. Existe uma cena em particular que afeta o espectador por completo, quando uma mantenedora francesa atesta que O Filme é um ser vivo, e como todo ser vivo está fadado a morrer, ainda que viva mais que nós. Nasce uma melancolia a partir dessa fala, mas que já percorria antecipadamente o filme como um todo; seguindo os passos de Diallo, o que acompanhamos é a morte de um espaço físico referencial, mas esse passamento ele transpassa também a matéria tátil. 

Diallo está também na frente da imagem, e tem um fascínio específico em radiografar a morte do ato com seu criador exposto a um velório que está acontecendo no tempo do filme, mas também no tempo corrente da vida – a nossa. São muitas as tessituras disponíveis na análise de No Cemitério do Cinema, partindo do princípio que sua observação parte de um debate que já está exposto antes do próprio filme existir. Mas seu diretor pega sua necessidade específica, que é muito válida na manutenção da memória de cada lugar, para expandir o debate pelo globo, saindo de sua Guiné natal e chegando até qualquer casa onde exista uma assinatura Netflix. Uma das muitas ironias em questão é seu diretor pregar uma matéria em uma parede sobre como o streaming estaria salvando o cinema africano, e não poder retrucar diante dessa que é uma verdade, não a única, mas uma delas. 

Apoie o Cenas

A aventura que nos propõe Diallo com seu filme é agridoce desde a origem, quando ele filma o ambiente fechado do cinema de seu lugar. Ele não apenas foi desativado, como virou uma espécie de mausoléu a céu aberto, onde as cópias dos filmes em 35 mm acumulam quilos de poeira e um descaso do poder público, que apenas não tem qualquer interesse em sua preservação. É a História sendo repetida na nossa frente, o tanto que pode ser evitado e o lugar que pode chegar a arte quando não valorizada. Ao mesmo tempo é um atestado de amor por tanto que lhe foi legado por essa mesma História, o querer fazer mais e melhor, a ideia do próprio No Cemitério do Cinema, que revolve a terra onde jaz a arte que é esquecida, uma voz dissonante que pode acordar novas vozes escondidas. 

Existe um momento especificamente de impacto em No Cemitério do Cinema que nos leva aos filmes de Joshua Oppenheimer (O Ato de Matar e O Peso do Silêncio) quando Diallo convida crianças a apresentar tanto o lúdico quanto o prático do universo do cinema. A princípio é apenas inspirador observar como tão rápido a arte é capaz de envolver quem não a tem em sua vida, congregar sensações e despertar emoções nunca antes vividas. Quando resolve fabular cenas entre as crianças, o diretor vai para o universo que eles conhecem, e elabora uma ação onde eles se enfrentem em atos de jogos de violência de mentirinha. O resultado são imagens que vão sendo reconfiguradas, onde crianças se fingem mortas em um massacre contínuo, que reverbera a verdade por trás daquelas ainda muito jovens existências. 

Para onde elaboramos um pensamento na direção de No Cemitério do Cinema, é recebida profunda admiração por um projeto que poderia ser apenas um (belo) institucional pró-cinema, mas que se estabelece como uma força propulsora da arte. A favor do que a mesma pode nos proporcionar, enquanto reveladora de novos desejos, mas também de uma revelação ainda melancólica quanto a perenidade de tudo que nos rodeia, arte ou vida. Como cada um desses elementos, embora conjugados muitas vezes em separado, para tantos representa algo de entrelaçamento instantâneo e comunicação impossível de dissociar. Como refletir a respeito de um futuro que podemos construir para manter, sem perder os avanços tecnológicos, mas entendendo que eles podem ser responsáveis pela restituição de um memorial cuja perenidade precisa ser preservada. 

Um grande momento
Acetato de celulose

[12º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo