Crítica | Cinema

Vidas Passadas

Encontros, desencontros, reencontros e os outros

(Past Lives, EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama, Romance
  • Direção: Celine Song
  • Roteiro: Celine Song
  • Elenco: Greta Lee, Teo Yoo, John Magaro, Moon Seung-ah, Leem Seung-min
  • Duração: 102 minutos

Há de se agradecer o biênio 2022/2023 por ter entregue a maior quantidade de filmes sobre adultos em muito tempo, e a grande maioria deles ser composta por acertos incontestáveis. Um deles é esse Vidas Passadas, desde já uma das produções mais cotadas a prêmios da próxima temporada, que com aparente simplicidade, sabe exatamente com quem e sobre o quê está falando.  Outro agradecimento precisa ser feito à Nouvelle Vague, historicamente falando, e a Richard Linklater de maneira mais próxima, por terem aberto as portas a um cinema onde pessoas de verdade se relacionam umas com as outras, e isso valer como uma narrativa que merece ser vista, e apreciada. Acompanhar mais uma jornada rumo a si mesmo, sobre como lidar de maneira adulta com o mundo que nos rodeia, poderia ser um resumo em linha gerais sobre todos esses títulos. 

Celine Song é a autora por trás da produção, com uma narrativa que se comunica com sua própria história. Imigrante coreana nos EUA, Song mostra em Vidas Passadas uma jovem autora que também sonha em ser reconhecida em sua área na América do Norte, para onde imigrou ainda criança. Nora hoje não é mais a menininha que era amiga de Hae Sung, mas ele nunca se deu conta disso; por 24 horas, a história desses dois amigos viveu mais de desencontros do que de um contato constante. Quando finalmente esse momento chega e se veem frente a frente, Nora está casada com Arthur, e o sentimento pouco investigado entre eles precisa ser confrontado. Nada disso é um TEMA em si; Song desfia suas ideias com parcimônia de impacto. 

Desde a abertura, Vidas Passadas deixa claro que existe por trás de sua aparência o que seria a verdade de cada essência, e também o que é a impressão que cada história exala. Assim como em Anatomia de uma Queda é explorado de maneira mais explícita, aqui também temos esses dois lados de um mesmo relato – aquele que existe e aquele que nossa cabeça pinta. Se não falamos exatamente as coisas como são, abrimos o campo de possibilidades das aparências se posicionarem como verdade, e encobrir as intenções verdadeiras sobre cada coisa. Song não trabalha isso apenas com delicadeza, mas com conhecimento de cada um dos habitantes desse universo, um trio que entende seu lugar na vida de cada um, e de como cada nova camada de uma relação pode ressignificar tudo que foi construído até então. 

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Grande filme que é, Vidas Passadas não é um prodígio apenas do ponto de vista das capacidades diretas de Song. A montagem de Keith Fraase, por exemplo, é paradigmático das qualidades da produção, tendo em vista que temos um ritmo dividido em três fatias na geografia temporal. Além disso, a edição precisa criar um ritmo narrativo que não diminua as qualidades individuais, e ainda mantenha a agilidade necessária para não atrapalhar seu jogo cênico, nem perder o espectador. Isso também é conseguido graças a capacidade de reflexão de suas motivações. Existe em cena um trio de personagens, e precisamos ter acesso aos três para que o filme permaneça equilibrado no que está sendo disparado. 

Para isso, o talento dos três atores em cena deveria ser primordial, e é a entrega deles que movimenta Vidas Passadas à identificação. Greta Lee tem uma postura solar que vai sendo desconstruída com sutileza ao longo da projeção. Teo Yoo consegue ir além, com sua fina performance como um homem que precisa sufocar o que sente porque não há como fazer mesmo; seu olhar é o que há de mais sincero em cena. Já John Magaro, revelado em First Cow, tem aqui desempenho tão impressionante quanto no filme de Kelly Reichardt, que define em cena uma quantidade exorbitante de sensações a cada nova cena, revelando mais do que seu talento, mas a adequação de sua postura em cena em um lugar de identificação particular.

Com o desenho desse trio protagonista sendo moldado junto aos sonhos de cada um de Vidas Passadas, Songa deixa claro que tais coisas mudam, são adaptados à novas realidades, mas que nada disso mascara as essência de cada um. Nora e Hae Sung são muito mais parecidos do que gostariam de admitir, e é por isso que soa tão melancólico vê-los constantemente em lugares díspares, ou sempre atrasado um para com o outro. Como estar sempre diante de algo que não se pode ter ou ser, o roteiro discute o quanto temos o conhecimento correto sobre nossas emoções sem que precisemos descer ao fundo do poço das relações. Mas inadvertidamente, será lá onde iremos parar em algum momento, torcendo para ter uma espécie de fuga que não nos deixe à deriva. 

O comentário irônico a respeito do título do filme é que ele tem sentido duplo. Vidas Passadas tanto vem a conversar sobre um tempo que já não é mais o presente, uma realidade que ficou no tempo que não existe mais, e também sobre o surgimento de novas possibilidades de existência, através de uma reestruturação do que o passado pode significar. Em todos os sentidos, os protagonistas do filme vivem em realidades que precisam reconduzi-los a um novo olhar para si mesmos, para que então possam voltar a amar também o outro.

Um grande momento

No bar

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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