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A Menina Que Matou os Pais

Um em dois

(A Menina Que Matou os Pais, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Suspense
  • Direção: Mauricio Eça
  • Roteiro: Ilana Casoy, Raphael Montes
  • Elenco: Carla Diaz, Leonardo Bittencourt, Augusto Madeira, Leonardo Medeiros, Vera Zimmermann, Allan Souza Lima, Debora Duboc, Kauan Ceglio
  • Duração: 80 minutos

No dia 31 de outubro de 2002 todos os jornais e noticiários de televisão foram tomados por um crime sinistro e misterioso: em um bairro nobre de São Paulo, numa casa luxuosa, o casal Manfred e Marisia von Richthofen era encontrado morto a marreradas na cabeça. Embora o sumiço de R$ 8 mil e US$ 5 mil dólares indicassem roubo, vários detalhes contrariavam a teoria, como o fato de não haver nenhuma porta arrombada. Além disso, havia marcas de cano de revólver nas testas das vítimas, as pancadas foram dadas no topo da cabeça, foram encontradas marcas de ferimentos nas mãos e de enforcamento, e a cena do crime havia sido montada. O fato dos rostos estarem cobertos também poderia indicar que não se tratava de um latrocínio. Foram muitas as teorias enquanto a investigação acontecia, entre depoimentos e acareações, uma notícia indicava o caminho mais terrível, era sobre a compra de uma Suzuki 1.500 cc, paga em dólares por Christian Cravinhos, irmão de Daniel, namorado de Suzane von Richthofen, primogênita do casal assassinado, no dia seguinte ao crime. No dia 8 de novembro, os três confessaram o homicídio. Voltando ao crime escabroso, o Prime Video lança agora um projeto interessante que une as versões pela ótica de suas figuras centrais. 

Impedidos de estrearem nos cinemas por conta da pandemia Covid-19, a ideia com A Menina Que Matou os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais é que os dois filmes sejam assistidos em conjunto. Cada um com 1 h 20 de duração, os longas são baseados nos depoimentos de Daniel e Suzane, respectivamente, no julgamento de julho de 2006, no tribunal do júri. Não serão encontradas aqui as minúcias da perícia criminal, depoimentos de terceiros ou qualquer outra menção externa, coisas que já foram vistas em tantos outros documentários e especiais sobre o mesmo crime. O roteiro, assinado por Ilana Casoy, uma das maiores no gênero criminal, em especial quando se trata de perfil criminológico, e por Raphael Montes, o que se vê se atém ao que está registrado nos autos do processo, a versão dada por eles para a noite do crime e, individualmente, como chegaram até ali. Quem assina a empreitada é Maurício Eça que, fora o drama Apneia, tem sua filmografia marcada por títulos voltados ao público infantil como Carrossel e A Garota Invisível.

A Menina Que Matou os Pais
© Stella Carvalho

Como não poderia deixar de ser, o ponto de partida é o mesmo, a chamada de emergência, a chegada da polícia e a entrada no foro onde se dará o julgamento. Como um filme de pontos de vista, no caso, dois, é aqui que as coisas começam a mudar. Em A Menina Que Matou os Pais acompanhamos a versão de Daniel. Fora da tela há um elemento muito forte que atua junto com o longa, a imagem de Suzane von Richthofen. Embora exista um esforço para recriar sua persona, sua presença é tão marcante e forte no imaginário que os filmes não conseguem apresentá-la. Ela já está dada, e suas ações já estão julgadas antes mesmo de executadas. Sobra ao roteiro tentar fazer com que a audiência tente vê-la como Daniel a via. Tarefa muito mais complicada em O Menino Que Matou Meus Pais, quando ela quer se apresentar como outra pessoa. Algo que se resolve mais fácil, pois a dissimulação que se grita dentro da tela e a mesma que se quer gritar fora dela olhando para aquela menina com o terço na mão. Há quase um compartilhar de sentimento, ainda que disfarçado de imparcialidade.

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A princípio não há um equilíbrio no que se vê, em especial em A Menina Que Matou os Pais. A mis-en-scène é atrapalhada e parece que as coisas não conseguem se encaixar bem, as atuações são forçadas, os cortes são estranhos, não existe ritmo. É preciso um tempo para que o filme se encontre ou talvez para que a gente se acostume e, mesmo assim, nunca é completamente. O núcleo dos Cravinhos, que conta com o sempre competente Augusto Madeira e Debora Duboc, é menos funcional que o von Richtofen, que tem Vera Zimmerman e Leonardo Medeiros como Marísia e Manfred e muito desse desequilíbrio vem da dificuldade/ facilidade de atuações que independem desses atores. Há uma máxima na atuação, falsa obviamente, que diz que é muito mais fácil viver vilões. Aqui, a influência do protagonista é decisiva no andamento de seu núcleo. Os Cravinhos de A Menina… são uns e os de O Menino… são outros não porque o roteiro define personalidades diferentes, mas porque Leonardo Bittencourt faz com que o segundo filme aconteça. Fora do papel de vilão que Suzana define para ele, não consegue convencer.

A Menina Que Matou os Pais
© Stella Carvalho

Carla Diaz, a menininha fofa da novela da Carla Peres (Insha’Allah!) e de quem ficamos íntimos no último BBB, é mais regular do que o parceiro de cena e, embora se saia melhor como a psicopata que, desde o começo sabe exatamente o que quer, tem seus momentos como a menina bobinha apaixonada, como na cena do parque de diversões. Além das oscilações, os dois até que funcionam bem juntos, mas Eça não exige tanto assim. É na cenas do casal que o diretor se mostra mais inventivo, buscando passagens plasticamente menos quadradas e mais sensoriais, delirantes, ora acertando, ora errando. Assim como todas as passagens que demonstram a espiral da paixão doentia relatada por ambos, a construção cênica dos desesperos de Daniel com a revelação do assédio ou de Suzane com a ideia do crime são bem interessantes.

Porém, infelizmente, são respiros dentro de uma estrutura muito afeita ao tradicional, o que acaba causando um certo estranhamento pela desconexão e que talvez não sobrevivesse se a história contada não tivesse o apelo e a ligação que tem com o público que a assiste. Nesse iô-iô de força, do elaborado ao banal, os filmes vão ficando com cara de remendados. Alem disso, há passagens esquisitas, como a da queda do aeromodelo, quando a câmera demora-se nele, que não fazem sentido e há até ótimas ideias, como a quebra da quarta parede em momentos pontuais dos dois filmes, ou o ponto de conexão “já acabou”, que se perdem em meio a tantas experimentações. É como se dois longas, com duas possibilidades de contar a mesma história não fossem o bastante, teria que ter mais um monte de penduricalhos para que algo se provasse. Uma atenção que talvez devesse ter sido dada à condução de atores, quem sabe.

A Menina Que Matou os Pais
© Stella Carvalho

Ainda assim, com todos os problemas — e aqui eu vou falar também da maquiagem e do cabelo de Suzane no julgamento –, um projeto deste tamanho acaba surpreendendo. O modo como, trazendo um dos crimes mais famosos do país, consegue criar duas realidades dentro do mesmo universo merece crédito. É sobre algo que já vimos e ouvimos falar muitas vezes, mas nunca desse jeito que estamos vendo agora. Entre Daniel e Suzane não há um que seja mais culpado, embora o crime dela seja mais socialmente condenável, pois matou os pais, ambos são assassinos. A Menina Que Matou os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais fala sobre um eximir de culpa inexistente, são dois filmes sobre duas pessoas que mataram. Da mentira que sabemos inventada pelos dois sobre como aconteceu o crime, quantas outras estão ali entre aquilo que falaram um do outro e de como foi a sua história? Nunca saberemos. 

P.S. Independentemente do crime, todos têm direito a um julgamento e a uma pena justa. 

Um grande momento
“Já acabou?”

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Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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