Crítica | Cinema

Dançando no Silêncio

Cicatrizes

(Houria , AGL, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Mounia Meddour
  • Roteiro: Mounia Meddour
  • Elenco: Lyna Khoudri, Rachida Brakni, Hilda Amira Douaouda, Nadia Kaci, Meriem Medjkane, Zahra Manel Doumandji, Sarah Handi, Camila Halima-Filali
  • Duração: 93 minutos

‘Gloria’ é uma canção italiana de 1979, de Umberto Tozzi, que em 1982 ganhou uma versão em inglês gravada por Laura Branigan. Incontáveis vezes ‘Gloria’ foi incluída em trilhas sonoras de filmes, mas creio que a primeira vez foi em Flashdance, quando a personagem de Cynthia Rhodes faz uma apresentação desastrosa de patinação do gelo ao som da canção. Essa cena, a mais triste do sucesso de Adrian Lyne, ecoa no espectador quando a voz de Tozzi ressoa em Dançando no Silêncio, estreia dos cinemas desta semana. Houria é uma jovem bailarina que, após uma sucessão de tragédias, é avisada que não pode mais dançar; quando a canção toca, nos recordamos que algumas pessoas são marcadas pela impossibilidade de se tornar o que gostariam de ser, então elas partem para ser o que nasceram para ser. 

Há quatro anos, Mounia Meddour surgiu com seu terceiro filme, uma pedrada chamada Papicha, que nos introduziu a esse colosso chamado Lyna Khouri. Diretora e atriz agora retornam aos cinemas em Dançando no Silêncio, e mostram que essa parceria ainda tem potencial para nos entregar material de grande impacto. Esse novo não tem a mesma proporção do anterior, mas o que o elenco faz e a sensibilidade da diretora em viabilizar questões femininas tão prementes, ao mesmo tempo em que varre a história da Argélia, é comovente. Mesmo com uma estrutura mais reconhecível, é o tratamento conjunto que acaba por nos conectar ao que está sendo contado, reverberando o emocional de um espectador mais sensível. 

Dançando no Silêncio
Divulgação

Não existe uma regra básica para o envolvimento com uma obra, mas existe um conjunto de fatores que pode vir a influenciar uma possível conexão. O trabalho dos atores com certeza é um deles, mas diriam críticos mais acadêmicos que isso não define autoria. Eles têm razão, esse é um trabalho que compete aqui a Meddour, que está muito melhor diretora que roteirista, dessa vez. Porém Dançando no Silêncio tem sua força vital no que é feito emocionalmente pelo grupo liderado por Khoudri, assessorada brilhantemente por Rachida Brakni e Hilda Amira Douaouda, respectivamente a mãe e a melhor amiga da jovem mutilada. Todo o grupo representa em cena uma força dramática sempre equilibrada para o alto, que não deixa a responsabilidade de toda a dramaturgia exclusivamente nas mãos de sua autora; essa autoria quase é concebida coletivamente, na sua essência. 

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Na cadeira de direção, o que Meddour emprega é sempre na intenção de potencializar o que é imponente na narrativa, sem evidenciar exageros. Dançando no Silêncio é um filme cuja imagem simbólica sempre carrega força de comunicação, em diferentes pontos de sua representação. Como o trabalho corporal da dupla de policiais a cada vez que mãe e filha se deslocam até lá, ou na questão estética do passeio na floresta entre Houria e suas novas amigas. Em um lugar estão o corpo como forma representativa de suas verdades (no caso, o descaso e o cansaço), no outro o trabalho da luz na construção complexa dos planos através das gradações evolutivas de cada fatia de sub-eventos. Parece simples, até singelo, mas é uma demonstração de maturidade autoral que aponta uma diretora em evolução, a despeito do que está sendo contado no roteiro. 

Dançando no Silêncio
Divulgação

O calcanhar de Aquiles de Dançando no Silêncio é exatamente a maneira por vezes em demasia de explicitar suas posições políticas ou emocionais, demarcando uma veia expositiva que cria uma ranhura com o trabalho de direção. É equilibrada a maneira como o filme consegue conectar o estado das coisas em relação ao que a Argélia transformou ou condenados por terrorismo no país, e a deformação machista tanto no contexto da macropolítica quanto da micro. São um grupo de mulheres emudecidas pela violência de muitas ordens, pelo desserviço que o Estado presta a diferentes problemas, e que o roteiro ora demonstra não conseguir fugir da obviedade, ora se depara com clichês estruturais de outros dramas com a mesma moldura. Se o filme não termina comprometido por completo, é porque apesar do roteiro não se importar em caprichar nos detalhes, a base entregue é muito forte.

A encorporação de uma zona de sororidade ostensiva é positivamente quebrado (dentro do que isso fornece como contraponto) pela personagem da policial que atende Houria e sua mãe, que demonstra uma outra argamassa do feminino também transposta em cena. Dançando no Silêncio, se apresenta um quadro de união e construção tocante na relação entre sobrevivência e empatia comum ao projeto, não deixa também de apontar que existe um outro lado que precisa ser compreendido e/ou debatido. De maneira plural, no entanto, acompanhamos como a história da protagonista está diante do encontro com outras narrativas, dilaceradas em maior ou menor grau, mas ainda conectadas pela sobrevivência, e no poder diário de perseverar em corpos que não cessam de ser violentados.

Um grande momento

O coração e o sol

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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