Cinema em linhasEspecial

Perdendo a razão

A crítica cinematográfica, assim como todo e qualquer produto de comunicação da atualidade, vem sofrendo transformações diárias. O sentimento de anonimato e impunidade, somado à  facilidade de publicação e ao alcance imprevisível, fazem com que boas maneiras e argumentações equilibradas sejam deixadas de lado. No lugar delas, desfiles de grosserias, agressões gratuitas e muito texto que não acrescenta nada a ninguém. Análises insuficientes que nunca conseguem ir além da gracinha e da polêmica.

A empáfia, que já conhecemos das antigas colunas de críticas de arte, não deixou de estar presente, e agora une-se perigosamente à agressão prepotente. A raiva que as pessoas sentem de um ou outro ator, o desprezo pelos diretores que não assumem a linguagem esperada ou mesmo a completa falta de consideração com o trabalho dispensado em cada obra entristecem e desanimam até os mais otimistas.

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Para piorar, nunca houve tanta gente falando sobre cinema. No reino da democrática internet, uma coisa positiva é que todo mundo pode expor o seu lado crítico e falar sobre aquilo que bem entende. O número de blogs/sites/portais de cinema aumenta a cada dia. Todos têm voz, muita voz, e sabem que podem ser ouvidos com uma rapidez e alcance nunca sonhados por quem cansou de passar horas dentro de uma redação fazendo o que mais agradava ao editor e esperando o dia seguinte ou a semana seguinte para ver o seu texto publicado. Mas falta a medida do bom senso, falta a responsabilidade com aquilo que está sendo dito. O cuidado com a palavra virou démodé, cafona e deu espaço a uma busca desenfreada por aqueles fugazes momentos de fama profetizados por Andy Warhol (se alguma coisa neste parágrafo te fez lembrar  um comediante de stand up, é porque essa verdade não está restrita aos círculos da sétima arte).

O desmerecimento do Oscar

Octavia Spencer em Um Jantar para Idiotas, de Jay Roach

Um bom exemplo de reações exageradas e sentimentos despropositados pôde ser visto durante o anúncio dos vencedores do Oscar. Desconsiderando que o prêmio tem pouca ou quase nenhuma relevância artística e ainda conta com um vasto histórico de premiações incompreensíveis, a maior festa da Academia de Arte e Ciência Cinematográfica de Hollywood demonstra bem o rumo passionalmente contaminado e  pouco respeitoso que reinou na internet no início desta semana.

Em que momento, por exemplo, Octavia Spencer passou a ser a pior atriz do mundo e a despertar nojo nas pessoas? Quando foi que ela se tornou completamente inapta a atuar? Porque, desde que recebeu os primeiros prêmios pelo seu trabalho, em Histórias Cruzadas, é assim que muitas pessoas fazem questão de classificá-la por aí. Spencer coleciona em sua filmografia pequenas participações e nunca esteve tão em evidência antes. De onde é então que as pessoas a conhecem tanto para julgá-la com embasamento? De Jantar para Idiotas, onde ela, ao encarnar lagostas mortas, é responsável pela cena mais engraçada de um filme com Steve Carell? De suas enfermeiras em Halloween II e Sete Vidas? Da moça no elevador em Quero Ser John Malkovich ou a colega de trabalho em Arraste-Me para o Inferno? Talvez do seriado Betty, a Feia. Mas são papéis tão distintos que, de verdade, não dá para entender tanto ódio.

 

 

Jean-dujardin
Jean Dujardin em O Artista, de Michel Hazanavicius

A mesma coisa pode ser dita da reação a Jean Dujardin, ainda que ele tenha protagonizado vários filmes – conhecidos por poucos, já que o cinema francês não é tão popular assim por aqui – e tenha mesmo um certo quê canastra. É fácil reconhecer as caras e bocas de um ou outro personagem aqui e ali em seu George Valetin, de O Artista, mas até que ponto isto desclassifica todo o seu trabalho? Se existe um manual que prega que canastrões nunca serão capazes de compor bons personagens, ele também não foi lido, por exemplo, por Burt Reynolds, um dos maiores representantes da categoria, quando criou Jack Horner, de Boogie Nights – Prazer sem Limites. Sem falar no despropósito que é afirmar que um ator que ganhou quase todas as premiações do ano, de Cannes ao próprio Oscar, não merece. Será que estão todos errados?

Na categoria mais concorrida do ano, Dujardin teve a árdua tarefa de encarar dois queridinhos do público: George Clooney, em Os Descendentes, e Brad Pitt, em O Homem que Mudou o Jogo, e um ator acima de qualquer questionamento: Gary Oldman, em O Espião Que Sabia Demais, sem falar em dois outros trabalhos dignos de nota que causaram ressentimento por não serem lembrados: Ryan Gosling, em Drive, e Michael Fassbender, em Shame. Todas grandes atuações, sem dúvida, mas e se quem levasse a estatueta fosse o mexicano Demián Bichir por seu papel em Uma Vida Melhor? Tão ou mais desconhecido, ele não iria despertar reações mais amorosas que as dispensadas ao francês. Fácil até antecipar frases como “Mais um Antônio Banderas”, “Imitação barata de Benício del Toro”, “A Academia tinha que dar para a minoria sofrida”. Tem alguma coisa errada nisso tudo.

Fato é que, acompanhados de pequenos comentários maldosos e nada amigáveis em outras categorias, as reações a Spencer e Dujardin foram os casos mais absurdos de ódio declarado naquela noite. E servem para acender um sinal amarelo para todos aqueles que escrevem sobre cinema e premiações do tipo. A imagem do comentarista está intimamente relacionada ao conhecimento que ele passa. Quando alguém entra numa sala gritando e xingando, ele recebe atenção naquele instante, alguns vão tentar acalmá-lo e outros vão juntar-se ao momento de fúria e também fazer coisas despropositadas (outra característica bem humana), mas aquilo não dura mais do que os poucos caracteres digitados. Quem se preocupa em embasar e, principalmente, respeitar, gera discussões civilizadas e não só permanece mais tempo, como é de fato ouvido e considerado.

Mais perto de você do que você imagina

O movimento da crítica rumo à gratuidade agressiva não é exclusivo. É muito comum, nos dias de hoje, nos depararmos com explosões odiosas por um ou outro motivo. Muito além de uma questão de complexos de superioridade ou inferioridades, o ódio exacerbado e os gritos de “morra” e “desapareça” podem ser associados ao desejo recente – e estimulado pelas novas mídias – de sempre ter uma posição sobre tudo que acontece.

Mas como falar e se posicionar sobre aquilo que é desconhecido? Assumindo a posição daqueles que são formadores de opinião (muitos também sempre mais preocupados em aparecer do que em compartilhar conhecimento) e, claro, agredindo. E não é nenhuma novidade que as agressões de ódio se manifestam quando não há embasamento. Quando será que as pessoas perceberão o papel a que estão se prestando e que, transmutado por tuítes e alterações de status no Facebook, Orkut e afns, o antigo “bateu, pedeu a razão” segue valendo?

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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