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O Legado de Sidney Poitier

Uma voz iluminando as sombras

(Sidney , EUA, CAN, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Reginald Hudlin
  • Roteiro: Jesse James Miller
  • Duração: 110 minutos

Eu tenho certeza mais que absoluta que meu primeiro contato com Sidney Poitier foi em Ao Mestre, Com Carinho. Por intermédio da minha mãe, que era apaixonada por esse homem, tive acesso ao filme que é o pai de tantos filmes, sobre “professores que domam turmas rebeldes e desajustados, se tornando um exemplo”. Poitier, então, na minha infância era o símbolo máximo da doçura cativante, da energia incomensurável, da altivez que eu de fato enxergava na frente de uma turma; ele era o símbolo máximo do que deveria representar um professor, e o respeito que deveríamos ter a um Mestre. Com o passar dos anos, a chegada da cinefilia, o estudo sobre cinema e o eventual trabalho como crítico, esse homem se vestiu de mito aos meus olhos, o que ele sempre foi. O Legado de Sidney Poitier acaba de entrar em cartaz na Apple+ e tenta dar conta da enorme dívida que o Cinema contraiu com uma divindade como ele. 

Porque Poitier revolucionou o mundo, simples assim. O que era o mundo para um ator negro, antes dele? O Oscar de Hattie McDaniel por …E o Vento Levou só evidenciou o que acontecia à atores e atrizes pretos e pretas que o antecederam. Condenados a interpretar personagens engraçados que os estereotipavam, sempre como coadjuvantes de brancos que os subalternizavam, uma força da natureza do tamanho de Poitier era necessário para que os coadjuvantes do documentário em sua homenagem pudessem surgir. O tal caminho rumo à revolução perpetrada por esse homem não foi conduzido a ponto de se fazer notar em meio ao tanto em seu redor. Porém não faltou a Poitier a consciência de que o caminho à sua frente estava sendo desbravado, e que o futuro seria de camadas formadas tanto por transformações quanto pela consciência do novo, em muitos sentidos. 

Dirigido por Reginald Hudlin, a produção tem como objetivo dizer que esse é o projeto da maturidade do diretor de Uma Festa de Arromba. Atuando mais como produtor, e já tendo trabalhado com outras estrelas pretas do cinema, como Richard Pryor e Eddie Murphy, sua chegada a esse filme é carregada do peso de mais de 30 anos na indústria, que consegue compreender o que seu personagem legou inclusive a ele. Talvez por ser também ele material transformado diretamente pela existência de Poitier, sua leitura a respeito dessa vida, de maneira quase linear e quase completa, consegue absorver cada ponto de exceção de uma vida imensa. Um dos raros casos que comprovam a regra de que uma biografia não deveria se ater a toda uma vida; isso justamente quase acontece aqui e é o ideal. 

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Com inegável carga emocional, O Legado de Sidney Poitier foi produzido com seu protagonista ainda vivo, o que deixou de acontecer em 6 de janeiro deste ano. Isso foi crucial para, entre outras coisas, ter em cena a visão de seu personagem central em cena. É o relato em primeira pessoa que Poitier concede a Hudlin a base do filme, que gira em torno das opiniões muito sensíveis do ator a respeito de sua história, pessoal e profissional. Com a câmera filmando seu rosto de maneira central a falar durante quase duas horas de duração, esse é o centro nervoso de uma narrativa até convencional, que é transformado por essa figura maior. Sua colocação a respeito de como se espelhava nos pais, incluindo dentro da carreira, de como se construiu como homem e como ator, é suficientemente potente para amplificar ainda mais sua trajetória. 

O Legado de Sidney Poitier
AppleTV+

Sim, é um depoimento exaltado e exaltante, não tinha como ser muito diferente. Mas até pelo entendimento do que poderia acontecer, O Legado de Sidney Poitier soa quase como um atrevimento da produção abordar os escorregões românticos do astro. Não apenas isso, mas essencialmente como nesse quesito, o filho Sidney acaba por se imaginar decepcionando o pai Reginald em suas reconstruções matrimoniais. Essa humanidade que o filme concede a seu homenageado é parte integrante de sua história pessoal, mas o filme não o defende – aponta seus erros e concede voz à ele. Além disso, o filme não deixa de apontar os momentos onde se sentiu fracassado e sua persona foi desmoralizada por um olhar que o julgava como um ‘token de branco’. A reportagem do New York Times dos anos 70 onde isso era colocado provavelmente foi escrita por alguém que não viu nenhum teor político em suas escolhas e na sua própria presença. Irresponsabilidade de avaliação para um homem que, apenas em 1968, protagonizou No Calor da Noite e Adivinhe quem Vem para o Jantar?, dois marcos políticos.

Em depoimentos emocionantes de suas filhas, suas esposas e de pessoas do naipe de Denzel Washington, Oprah Winfrey, Spike Lee, Halle Berry, Barbra Streisand, Robert Redford, Morgan Freeman, Louis Gossett Jr., Quincy Jones, e tantos outros, O Legado de Sidney Poitier é uma peça fundamental para compreender não apenas a vida de um imortal, mas de um pedaço da História americana. Visto pelos olhos de um imigrante que se conecta à arte que mais emprega gente na América do Norte, o menino analfabeto Poitier reinventou a si e a quem o precedeu, abrindo um caminho inédito dentro do racismo que conheceu de perto. O que promoveu ao seu redor é retratado de maneira até convencional, mas que não consegue apagar a força da luz que ele ainda irradia. 

Essa é a grande herança que seu nome carrega, e o que Hudlin consegue capturar com o tanto de sensibilidade possível para um símbolo como Poitier. Em passagens de como observava as relações de seus pais com o resto do mundo e como tentou reproduzir essas dinâmicas em sua vida, O Legado de Sidney Poitier captura momentos antológicos de sua voz, como quando a deixa mais grave ao citar seu pai. A emoção de si mesmo, a contagiante expressão de sua personalidade e a forma indelével que deixou marcado seu caminho para os que vieram depois dele, sua amizade com Harry Belafonte, o amor que plantou em todos que passaram por ele, tudo isso é sua essência. Poitier plantou uma semente em vida, que transforma um filme tradicional em um estudo emocionante (e breve) sobre as reviravoltas que um só homem promoveu em uma indústria que deve tanto a esse legado. 

Um grande momento

O Oscar – e diretamente após ele

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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