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Flores Raras

(Flores Raras, BRA, 2013)

Drama
Direção: Bruno Barreto
Elenco: Miranda Otto, Glória Pires, Tracy Middendorf, Marcello Airoldi, Treat Williams, Lola Kirke, Tânia Costa, Marianna Mac Niven, Marcio Ehrlich, José Eduardo Macedo Soares
Roteiro: Carmen L. Oliveira (romance), Matthew Chapman, Julie Sayres, Carolina Kotscho
Duração: 118 min.
Nota: 7 ★★★★★★★☆☆☆

Elizabeth Bishop aprendeu desde cedo que a arte de perder não é nenhum mistério. Perdeu o pai antes de completar um ano de idade e, aos cinco, viu sua mãe ser levada a um hospital psiquiátrico para nunca mais voltar a vê-la. Viveu meses infelizes com os avôs, sofreu com diversas alergias e encontrou refúgio na poesia. Porém, durante os anos em que viveu no Brasil, aprendeu que nem só de perdas se vive. Elizabeth ganhou um novo lar, amigos, um prêmio Pulitzer e um amor.

Este amor, que transformou o que inicialmente seriam poucos dias de estada no Brasil em mais de uma década de vida, é retratado pelo diretor Bruno Barreto em Flores Raras. Inspirado no romance “Flores Raras e Banalíssimas” de Carmen L. Oliveira, o filme mostra, de forma sensível e até poética, em determinados momentos, o romance entre a escritora e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares.

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Bruno Barreto foi feliz na escolha da dupla de atrizes que protagoniza a história. Não apenas pelas ótimas atuações de Miranda Otto e Glória Pires, mas porque também pôde explorar o biotipo de cada uma delas (a brancura e a magreza de Miranda Otto; a pele morena e o corpo mais curvilíneo de Glória Pires) para criar uma analogia sobre o encontro de dois universos diferentes. O roteiro deixa bem claro, já no início do filme, que as personalidades de Bishop e Lota são distintas. a escritora é tímida, introvertida, insegura, discreta, gagueja ao falar em público, usa roupas sóbrias e só consegue dar vazão aos seus sentimentos através daquilo que domina bem: escrever poesias. A arquiteta é o oposto. Extrovertida, assertiva, sedutora e carismática, ela gosta de ser o centro das atenções, se comunica bem e, prática, é daquelas pessoas que planejam e a executam a ideia que têm. A sensação é a de que para ela não existem barreiras.

Ainda que erre ao retratar de forma caricata a chegada de Bishop ao Brasil, pesando no espanto da poeta ao se deparar com o ambiente “alegre” e tropical do nosso país, o diretor se redime quando passa a focar nos dois universos que realmente importam: o de Bishop e o de Lota. A construção das personagens é muito interessante e bem feita. A disparidade entre as duas personalidades é reforçada de forma visual, como quando observamos a decoração do escritório em que Bishop trabalha na casa de Lota. O ambiente simétrico (com exceção do formato da escrivaninha que ganhou da amante) e basicamente monocromático, que apenas permite um pouco de cor aqui e ali, se contrapõe à vista deste escritório, um colorido jardim cuidado pessoalmente pela própria Lota, mostrando que, mesmo coexistindo no mesmo espaço físico e vivendo uma ardente paixão, os universos particulares das amantes têm dificuldades em se misturar, principalmente pela parte de Bishop, que não consegue se entregar totalmente ao relacionamento.

Esta dificuldade de adaptação não acontece com a outra “estrangeira” da história, Mary, amiga de faculdade de Bishop e mulher de Lota até a chegada da escritora. Ela não está apenas adaptada à vida no Brasil, mas está, principalmente, adaptada à vida de Lota, submetendo-se às condições impostas pela arquiteta, chegando ao ponto de aceitar uma filha, literalmente uma criança comprada, como compensação por ter sido trocada por outra mulher.

A construção das barreiras enfrentadas por Elizabeth Bishop em viver tudo isso, apesar de se sentir acolhida, amada e desejada, é uma das grandes qualidades do filme. Bruno Barreto é sutil neste retrato. A forma como o diretor conduz o relacionamento homossexual também merece elogios. Barreto deixa de lado estereótipos e constrói, acima de tudo, uma história sobre duas pessoas, em detrimento do sexo, de uma maneira sensível, sem julgamentos, minimizando a questão do preconceito e mostrando os altos e baixos comuns a qualquer relação amorosa. O que presenciamos é o nascimento da atração física, a transformação deste sentimento em amor, o desgaste derivado da convivência e os acontecimentos específicos da vida do casal.

Apesar de todo o cuidado, há duas coisas que pesam contra Flores Raras. A primeira delas é o uso da personagem Mary como muleta em algumas situações. Se a história precisa que Bishop e Lota fiquem sozinhas, o roteiro sempre arruma um jeito de tirar Mary (que mora na mesma casa que elas) de circulação, geralmente a personagem viaja e nunca sabemos o motivo destas viagens. Mas se a situação pede uma vilã para atrapalhar as duas, o roteiro também dá à terceira personagem esta incumbência. Em detrimento do papel da ex estar contextualizado ou não à história real entre Bishop e Lota, este tipo de artifício é desnecessário na obra.

A segunda coisa que gera estranheza é o uso excessivo da língua inglesa. A quantidade de diálogos em inglês no filme não chega a ser inverossímil, pois Bishop e Mary são americanas e os demais personagens estão em constante contato com diplomatas e afins, mas falta organicidade. Talvez a explicação esteja na tentativa de entrar mais facilmente no mercado cinematográfico dos Estados Unidos, porque, na tela, muitas das situações são incongruentes, como o momento em que Elizabeth conversa com um médico. Ela começa o diálogo fazendo uma pergunta em português e ele a responde em inglês. Não que os diálogos em inglês sejam desnecessários, mas fica evidente que eles poderiam ser suavizados e diminuídos.

Apesar dos deslizes e de não arrebatar o espectador como poderia, Flores Raras é um filme que conta com muito mais acertos do que erros. Bruno Barreto dirige bem este relato tocante e humano da história dessas duas mulheres de vanguarda, que aprenderam com suas experiências de vida que a arte de perder (e a de ganhar) não chega a ser um mistério, por muito mais que pareça.

Dois Grandes Momentos:
Chorando em inglês e o discurso após o golpe militar.

Flores-raras_poster

Links

IMDb [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=XNXTCs8-M1s[/youtube]

Mila Ramos

“Soteropaulistana”, publicitária, amante das artes, tecnologia e sorvete de chocolate. O amor pela Sétima Arte nasceu ainda criança, quando o seu pai a convidava para assistir ao Corujão nas noites insones. Apaixona-se todos os dias e acredita que o cinema é capaz de nos transportar a lugares nunca antes visitados. Escreve também no Cartões de viagens imaginárias.
2 Comentários
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Mila Ramos
Mila Ramos
16/09/2013 20:11

Pois é, Alex. Acho que a Tracy deveria ser mais humanizada, isto só enriqueceria o triângulo amoroso. Mas para mim, este filme é uma grata surpresa. :)

Alex Gonçalves
Alex Gonçalves
07/09/2013 18:40

Mila! Lamento não ter vindo aqui antes. A falta de tempo pesou. Como trocamos impressões após o filme, já conhecia o seu julgamento final. No entanto, fico surpreso com o seu incômodo com a personagem de Tracy Middendorf (de “A Hora do Pesadelo 7”, risos), do qual concordo absolutamente. Isto representa um tipo de erro que infelizmente vem sendo apresentado por muitos roteiristas, pois qualquer amante que os protagonistas tenham automaticamente serão encarados por eles como vilões, algo que Mary não deveria ser. De qualquer modo, é como você exatamente disse: “Flores Raras” é um filme com erros que se tornam tímidos diante dos vários acertos. Belo filme.

Beijos!

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