Crítica | Festival

The Starling Girl

A fé instrumentalizada

(The Starling Girl, EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Laurel Parmet
  • Roteiro: Laurel Parmet
  • Elenco: Eliza Scanlen, Lewis Pullman, Jimmi Simpson, Wrenn Schmidt, Claire Elizabeth Green, Ellie May, Austin Abrams, Chris Dinner, Paige Leigh Landers
  • Duração: 117 minutos

A casca de The Starling Girl não é atraente. A estética pasteurizada; o desenvolvimento previsível da trama; personagens e passagens clichês criam uma barreira a ser superada no longa de estreia de Laura Parmet. Porém, por trás disso, há algo que realmente interessa: o retrato do que é ser uma mulher adolescente em uma sociedade fanática religiosa. No centro da trama está Jem, uma menina fervorosa em sua fé, mas que ao mesmo tempo está cheia de desejo e não consegue controlar os hormônios.

Se no geral Parmet não consegue fugir daquilo que viu – e vimos tantas vezes antes – e replica cenas de filmes produzidos em larga escala (mesmo com isso disfarçado pela relação com a luz e as externas do diretor de fotografia Brian Lannin), a força está nos detalhes. As emoções da protagonista são expostas de maneira eficiente e dão força ao filme. Logo no começo, o modo como ela vai do orgulho ao constrangimento, em minutos, numa construção que se constrói de várias reações e tem a noção exata da força de Eliza Scanlen.

Alma do filme, Scanlen tem uma noção precisa do papel e alterna entre todas as muitas sensações e sentimentos de Jem. A conexão que se estabelece entre ela e a diretora, onde ambas contribuem igualmente, é fundamental para Starling Girl, pois não seria difícil que tudo descambasse para um exagero comprometedor. Em um filme onde o clichê e o melodrama estão sempre pedindo mais, a diretora dosa a atriz e a atriz resiste aos excessos da diretora-roteirista.

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E não faltam coisas assim pelo caminho. Quase tudo o que circunda Jem tem alguma coisa fora de ordem, em tintas carregadas ou em tons muito acima. Seja em todo o arco do pai, depressivo em sua relação com o passado e desfecho; em toda a determinação da mãe; no reconhecimento de elementos no homem por quem ela se apaixona; ou em qualquer outra figura de autoridade. Há alguma obviedade na construção das figuras paternas e no modo como a jovem se relaciona com elas, e há também esse poder invisível com o qual todos estão sempre lidando dentro do filme.

Naquele universo, não há apenas a condenação do desejo por si mesma e pelos outros. The Starling Girl fala de uma doutrinação silenciosa, onde Deus aparece como essa grande força instrumentalizada por anos pelo patriarcado para fazer com que as mulheres sigam o caminho esperado, o grande punidor pelos desvios do caminho. Algo tão arraigado que se desenvolve naturalmente dentro de Jem, assim como é natural que seja uma das cobranças de sua mãe, passando por gerações e é utilizado por aquelas com quem ela convive diariamente – tenham a mesma idade ou não. Nesse coming-of-age amadurecer é também entender que a grande estrutura subjuga a todas e romper com ela é difícil e dolorido. 

A questão, obviamente, ultrapassa o filme e encontra fagulhas de identificação em qualquer mulher que o assista, independentemente da religião. Todas têm posturas permitidas e julgamentos repetidos à exaustão em sua história, tanto que isso se transfere e se transforma em vergonha e autocensura. Assim como não foi para Jem, amadurecer nesse mundo não é fácil, mas estamos chegando lá. Pelo menos já se fala sobre isso. 

Um grande momento
O desejo e o símbolo daquela que decidiu esperar

[Sundance Film Festival]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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