Crítica | Streaming e VoD

Ficção Americana

A representação única

(American Fiction, EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Cord Jefferson
  • Roteiro: Cord Jefferson
  • Elenco: Jeffrey Wright, Tracee Ellis Ross, John Ortiz, Erika Alexander, Leslie Uggams, Adam Brody, Keith David, Issa Rae, Sterling K. Brown
  • Duração: 117 minutos

Em uma estrutura social arcaica e carcomida, onde a branquitude define lugares e méritos, onde o sistema se mantém disfarçado de desconstrução e avanço, onde a legitimidade está na manutenção do estereótipo e na escolha de representantes únicos, Ficção Americana surge como uma demonstração dessa realidade. Logo em sua primeira cena, Monk, o protagonista, professor de literatura, debate com uma aluna branca, em uma turma majoritariamente branca, a exposição da palavra “nigger”. Ele, negro, contextualiza e diz já ter superado seu uso. Ela se levanta e sai da sala. Seu “radicalismo” o leva a uma dispensa forçada pelo conselho também branco de outros professores.

De lá, ele parte para Boston, onde está sua família, e o filme se abre em dois caminhos, em um, Monk é o autor de livros que não publica há algum tempo; em outro, o filho que vai reencontrar a família, com a mãe doente e seus irmãos, revivendo dilemas do passado. Inspirado no romance de Percival Everett, o roteiro de Cord Jefferson, que também assina a direção, interessa por colocar em um mesmo lugar histórias que se querem contadas pelos tradicionais “donos dos espaços” e as histórias que deveriam ou poderiam ser contadas. Enquanto o editor do protagonista afirma que ele precisa escrever sobre policiais no gueto ou mães solteiras de cinco filhos, logo ao lado ele tem que lidar com o luto e uma vida que interessa muito mais.

Monk, o representante negro em um espaço dominado pela branquitude, sabe que o mundo quer um novo tipo de símbolo único, quer aqueles que assumem um discurso capaz de validar uma ruptura e uma inclusão que nunca foram de verdade. Isso está em Sintara Golden, a autora que recebe todas as atenções por seu livro “We Lives in da Ghetto”, que reflete aquilo que o mercado editorial acha que merece atenção e ela, uma assistente de editores, descobre. Leva também à “Porra”, piada do protagonista em forma de livro que vira fissura, nos dois sentidos da palavra, do mercado.

Apoie o Cenas

De forma sarcástica, Ficção Americana fala daquilo que é validado pela branquitude e, ao mesmo tempo, das histórias que deveriam de fatos estar sendo contadas. Se o filme começa com o tokenismo – que se caracteriza pela presença do representante negro em espaços sempre dominados por brancos, e é mais um modo de mascarar o racismo e dizer que há inclusão e diversidade –, a falta de representação, estereotipização, invalidação e invisibilização são temas do longa, que ainda encontra espaço para mergulhar em outras intenções ficcionais, incomodando, os que só enxergam ali alguma forma de “esperteza”. Em um mundo de representações sempre brancas, onde as imagens negras se repetem e só podem estar restritas a uma determinada forma, essa é mais uma maneira racista de dizer que existe um único lugar a ser ocupado.

Há ousadia e provocação na crítica de Ficção Americana, principalmente em sua estrutura, pela contraposição narrativa que busca expor as mazelas não só dos Estados Unidos, mas do mundo de hoje. O texto instigante ganha muito com o elenco. Jeffrey Wright como Monk e Starling K. Brown como seu irmão Clifford estão mesmo inspirados nos papéis, mas Issa Rae como a escritora Sintara, Erika Alexander como Coraline e John Ortiz como Arthur, entre outros, acompanham muito bem a dupla. Porém, embora acerte no uso da elegante trilha de Laura Karpman, Jefferson nem sempre encontra regularidade na construção fragmentada e não linear. Há um desequilíbrio entre a narrativa familiar e a do escritor, além de uma certa frieza e distanciamento na construção do final.

Mas o filme ganhou tanto no na ironia e no modo como satiriza as hipocrisias da sociedade, que isso acaba superado. American Fiction faz com que o público questione suas próprias convicções e reflita sobre os mecanismos de poder e opressão, o que é muita coisa. Uma bela obra, que gera debate e provoca reflexões, seja pela sua aproximação ousada, pela crítica contundente ou pela forma com que aborda um tema tão relevante.

Um grande momento
Olhando para o ator antes de sair do estúdio

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo