Crítica | Festival

Servidão

(Servidão, BRA, 2019)

  • Gênero: Documentário
  • Direção: Renato Barbieri, Neto Borges
  • Roteiro: Renato Barbieri
  • Duração: 72 minutos
  • Nota:

Durante a feitura do longa de ficção Pureza, gravado no Pará e que traz com força a temática do trabalho escravo, o cineasta paulistano radicado em Brasília Renato Barbieri sentiu a necessidade de criar um outro filme: um documentário que tratasse das chagas da escravidão e da exploração humana nesse nosso território desde que foi invadido pelos portugueses em 1500. Exibido no Festival de Brasília 2019, Servidão tem circulado por diversos festivais sendo o mais recente o Amazônia Doc – Festival Pan-Amazônico de Documentários, na plataforma AmazôniaFlix.

Trazendo a voz da cantora e atriz Negra Li na narração, o diretor, roteirista e produtor Barbieri – que vem de uma longa carreira no cinema documental, iniciada na produtora Olhar Eletrônico – em parceria com Neto Borges costura vários talking heads a um arquivo e uma trilha (de Eduardo Canavezes) que edifica a dor nos olhos de tanta gente expropriada de si. As participações, algumas mais potentes na fala do que outras – que dão mais uma fundamentação histórica – vão deixando a audiência consternada, como o relato de um homem que trabalhava em condições desumanas pra ganhar, no fim do mês, um salário ínfimo de R$ 40 e todo o processo de desumanização que deriva de ser explorado; ou as lembranças evocadas pelo fotojornalista João Roberto Ripper de tudo que ele viu e registrou, como crianças requeiras, que catavam sobras de minério e não tinham brilho no olhar, tendo que aos 10, 11 anos sustentar toda uma família.

Servidão (2019)

Doloroso, mas necessário de ser visto, Servidão se utiliza ainda da performance e de passagens como a cena em que o escritor Dodô Azevedo (também entrevistado) está no local onde ficava o Cais do Valongo, o “nosso muro das lamentações” já que maior porto negreiro do mundo, pois quase 5 milhões de pessoas aportaram aqui das quase 12 milhões sequestradas durante a diáspora africana. O peso simbólico e urgente de se falar sobre essa face oculta do país que supostamente é uma democracia racial, urge, num momento onde o bolsonarismo alarga as diferenças sociais e escancara o preconceito.

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Num Brasil africano, com população predominantemente negra e parda maltratada pelas estatísticas, as lágrimas que se demoram nos olhos cansados do idoso historiador Alberto Costa e Silva (é dele a frase-lamento “a culpa é nossa que não transformamos a vida como ela merecia ter sido transformada”), falam muito sobre a necessidade de reparação com milhões. Com os remanescentes das populações indígenas, esmagadas e escravizadas pelo colonizador, com os trabalhadores migrantes explorados, com a maior parcela da população brasileira que vive no limiar da pobreza servindo a uma ideia de miscigenação e pluralidade que é viga mal constituída, instável, o que nos joga no abismo das classes, castas sociais e meritocracia.

Servidão (2019)

Servidão tem uma duração até curta mas tudo que constrói e apresenta permanece por um bom tempo – como o segmento “in memorian” com cenas de arquivo e de filmes como Pedro, Profeta da Esperança que apresenta aqueles que deram a vida na defesa dos direitos humanos de brasileiros (direito dos manos?), tal como o bispo espanhol Pedro Casadáglia, o padre Josimar, a agricultora Margarida Alves ou o ambientalista Chico Mendes.

O filme retém muita informação sobre a diáspora, o ser segregado e como os dados não atenuam mas só tornam mais cruel a história posta – a exemplo de 13ª Emenda, de Ava DuVernay sobre o sistema carcerário adoecido dos EUA. Mas onde a desesperança se acentua, onde se constata a desumanidade nas reportagens de Leonardo Sakamoto ou no dia a dia do auditor fiscal do trabalho Marcelo Gonçalves Campos, salta a necessidade de um Ubuntu evocado pelo professor Rafael Sazio dos Anjos, de estar imbuído de humanidade, é o que domina o epílogo do filme e de certa maneira renova um pouco da fé em dias melhores. Singrando pelos rios da Amazônia, homens simples, ribeirinhos, manifestam a vontade de que as correntes sejam quebradas, de que o país seja finalmente liberto. Que a função também poética, reflexiva e política do cinema se cumpra com filmes como Servidão.

Um grande momento
Carros passeiam por algumas ruas mostrando a miséria da servidão moderna.

[6º Amazônia Doc]

Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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