Crítica | Streaming e VoDFestival de Berlim

Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar

Marcelo Gomes na Berlinale: O Brasil não conhece o Brasil

O título Estou me guardando para quando o carnaval chegar lembra a doce voz de Chico Buarque em cancão de sua autoria. O diretor pernambucano Marcelo Gomes foi astuto ao colocar no título um evento que o mundo todo associa com o Brasil pela imensa visibilidade que tem. O título em inglês Waiting for Carnival leva os gringos ainda mais pro caminho errado. Que bom!!!

Ao invés de mulheres exuberantes, sempre com sorriso e muitas purpurinas no rosto, o filme de Gomes nos leva para aquilo que ficou eternizado na voz de Elis Regina: “O Brasil não conhece o Brasil”. Numa mistura instigante entre os formatos documentário e ficção, ele nos leva pelos rastros de sua memória para uma cidade com nome indígena: Toritama

O filme começa com cenas que parecem de um road movie e que lembram as tomadas do cinema independente norte-americano dos anos 1970. Tomadas de beira de estrada de um Agreste cheio de poeira no ar e com árvores resistindo ao sol que nunca se põe.

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Marcelo começa pegando o espectador pela sedução de sua retina e por fotos que remetem a um imaginário da infâncias, quando a crista da onda era colecionar figurinhas de papelão com cara de modelos de vitrine. As silhuetas de modelos em outdoors XXG dão uma pitada de um mundo imaginário, sem ainda se saber, se bom ou ruim. Toritama é uma cidade que remete Marcelo ao seu pai, que o carregava a tiracolo para o trabalho, quando era pequeno. Mas a parte da autobiografia é só um pedaço do filme e, poucas vezes, mais lá para frente, recordado, mas o que o diretor nos instiga a ver, é o que a cidade, de fato, se tornou.

O filme dura 83 minutos. Um documentário, mas com takes de ficção e vice-versa. A voz em off de Marcelo nos remete ao formato documental quando a gente menos espera, enquanto a alto teor de coloração das imagens injeta algo de leveza, que imediatamente é cortado pelos diálogos dos protagonistas e pelas intervenções. Num momento do filme, a mulher que conta a sua vida recebe “ajuda” de seu parceiro que acha que “não ficou bom”. Ele, ela e Marcelo começam a discutir sobre isso. Desconcertante delícia…

O silêncio também tem um grande papel nesse filme e é ele que dá uma densidade para o relato de pessoas que não vivem perto do mar nem malham todos os dias na academia e só têm uma preocupação: o quanto produzir por dia.

A maioria é autônoma, o que nada mais é do que trabalho irregular, sem depósito no INSS e sem direito a plano de saúde. Mas quem espera ver gente reclamando da vida, vai se decepcionar. A gente sabe. Na essência, no DNA do brasileiro tem uma característica intrínseca em não ver tudo perdido, em ver algo bom, mesmo em situações de necessidade. Alguns se dizem felizes com a “independência de escolher o horário de trabalho” e não ter horário fixo nem um chefe atazanando a cabeça. Somente um dos entrevistados coloca a problemática de não ter seguro de saúde e declara ter medo de chegar um momento de emergência.

Especialmente esses diálogos sobre as formas de trabalho são a espinha dorsal de uma crítica social acirrada: a pressão em produzir está tão intrínseca neles e nelas, que até parece que vem de livre e espontânea vontade. Marcelo deixa isso vir à superfície através de diálogos, semblantes, frases entre linhas. O que vale é o número de jeans produzidos diariamente, de bolsos costurados, de apliques em bermudas com ou sem glitzer, os buracos estilosos feitos na altura da coxa das bermudas ou na altura do joelho das calcas.

Marcelo nos revela biografias esquecidas, pasteurizadas sob um denominador comum e naquilo que é a legitimação do capitalismo: você é aquilo que você produz!

As histórias, em suas discrepâncias, suas ambiguidades angariam empatia: pela ingenuidade, pela determinação e pela capacidade em aceitar o destino que lhes foi oferecido sem nem cogitar o papel de vítima: “Se você quiser trabalhar, pode ficar aqui”.

Amazonas não perderam a ternura

Mulheres contam que fazem vários turnos por dia e que, na hora do almoço, vão para casa “dar almoço às crianças”. Na parte da tarde, voltam para as empresas garagem. No finalzinho da tarde, de novo, o ritual: dar janta para a família. Lá pelas 21h elas voltam para a empresa. O cunho desse discurso não tem nada de amargo enquanto a máquina continua martelando o mesmo ritmo.

A orquestração das máquinas simboliza a automatização da força de trabalho e acaba se tornando a trilha sonora: visceral e orgânica. O GRIVO assina a trilha sonora completa. E que trilha sonora!

Num momento de pausa dos trabalhadores, rola um funk pauleira. É também este o único momento de descontração dos funcionários que no âmbito de trabalho formam uma cumplicidade silenciosa. A indústria de produção de jeans pasteurizou as biografias de uma cidadezinha escondida no Agreste de Pernambuco, até mesmo no mais aguardado do ano: a chegada do carnaval, o símbolo da libertação de hierarquias, padrões sociais. Todos são iguais nos dias de folia.

Nessa época, os compradores de máquinas de costura são só sorrisos. A câmera os mostra atrás do balcão de suas lojas. O telefone não para de tocar. Com insustentável leveza, olhando para a câmera em tom super descolado ele ensina: “Depois do carnaval, eles compram as máquinas de novo. Essas duas pilastras econômicas seguram essa cidade que é uma mistura de Fata Morgana com uma realidade de sol a pino, poeira e incessantes máquinas.

Poucos minutos antes da Première Mundial de Estou me guardando para quando o carnaval chegar no CineStar 7, no Sony Center, Marcelo Gomes falou – com exclusividade – com o Cenas. O cineasta mostrou bem-vindo discernimento sobre a atual situação do Brasil, mas ratificando a essência do brasileiro. Ele não desiste nunca e a gana de lutar continua sendo o lema.

Ao chegar no cinema, o diretor foi calorosamente recebido pela diretora da Mostra Panorama, a espanhola Lázaro Paz, com um abraço forte e muitos sorrisos antes de irem com a equipe para a parede azul para fotos para a posteridade. A sala do cinema estava cheia, mas não houve grande fila do lado de fora e o fluxo de entrada foi bem tranquilo.

Marcelo, você veio aqui para Berlim em 2017, quando o Brasil estava passando por um momento político muito difícil. Inclusive houve até um protesto do filme ao final da sessão. Dois anos depois, a situação do Brasil ficou ainda muito mais trágica. O que você pensa de estar nesse momento na Berlinale, o festival mais político do mundo?

Eu acho que é um grande mérito do filme e um prazer muito grande de estar aqui no festival, porque Berlim é uma gincana de filmes sobre temas políticos da contemporaneidade. Trazermos, ao todo, 12 filmes brasileiros com temas tão diversos, mostrando toda a polaridade do Brasil, mostrando fraturas sociais, é um momento pro mundo inteiro conhecer melhor o nosso país. Tomar conhecimento do que passou e do que está passando agora. É uma boa reflexão tanto para nós brasileiros, mas também uma janela para gente apresentar os problemas do Brasil para o mundo.

O Ministério da Cultura foi extinto. Você teme que, nos próximos anos a presença do cinema brasileiro em Berlim será afetada por causa da política cultural que rege o Brasil hoje?

Eu acho que [o cinema brasileiro] pode ser afetado, mas a gente tem muita garra! Se o financiamento for afetado, a gente vai continuar criando, produzindo. A gente tem uma indústria cinematográfica potente, que gera muitos empregos, sendo de direita ou de esquerda. Desmobilizar toda essa quantidade de profissionais que trabalha no setor audiovisual será muito difícil, com uma taxa de desemprego muito grande. E se acabarem os financiamentos estatais, a gente continua fazendo cinema de resistência. Como sempre.

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Fátima Lacerda

Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim e cobre o festival desde 1998. Formada em Letras no R.J e Gestão cultural na Universidade "Hanns Eisler", em Berlim é atuante nas áreas de Jornalismo além de curadora de mostras. Twitter: @FatimaRioBerlin | @CinemaBerlin
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