Crítica | Festival

A Invenção do Outro

Ansiedade constante

(A Invenção do Outro, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Bruno Jorge
  • Roteiro: Bruno Jorge
  • Duração: 141 minutos

Nesse Brasil de muitos brasis, acompanhamos, no interior da Amazônia profunda, uma elaborada e complexa expedição para contatar um grupo de indígenas isolados da etnia korubo. Parte da missão era também promover o reencontro de Xuxu com sua aldeia. Integrante do grupo, ele fora capturado pelos matis com sua família anos antes. A frente dos trabalhos está o indigenista Bruno Pereira, um dos maiores especialistas em indígenas isolados ou de recente contato do país e então servidor de carreira da Funai. Ele licenciou-se do órgão durante o governo Bolsonaro pelas inúmeras políticas contrárias à proteção dos povos originários e do meio ambiente, e foi assassinado em junho desse ano ao lado do jornalista britânico Dom Phillips.

Cartelas guiam o espectador pelas fases dessa aproximação. Os 144 minutos de A Invenção do Outro condensam a duração de pouco mais de um mês, quando vemos o grupo se preparar para chegar à aldeia, cumprir a quarentena e fazer a busca pelos indígenas. Elementos vão se acumulando em tela e aquilo que se vê gera reações controversas, que nos forçam a estabelecer outros lugares de percepção. Bruno Jorge, documentarista que foi um dos codiretores de Piripkura, tem a consciência dessas ambivalências. Funai, o homem branco, violência e morte aparecem e reaparecem, permeando todo o filme.

A Invenção do Outro
Cortesia Festival de Brasília

Há um jogo de “outros” a serem inventados perante as lentes do cineasta e aqueles que acompanham as imagens; pelas palavras daqueles que tiveram algum, ainda que pouco, contato e formaram a sua ideia (difundindo-a). Há um caminho a ser precorrido nesse retorno, um personagem que o conhece e um espaço de criação ali, algo que se choca com a realidade daqueles que pela primeira vez estão vivenciando aquela presença. A trama é complexa e a interação a deixa ainda mais intrigante. Não dá para ignorar o colonialismo óbvio, muito sentido nas falas de Xuxu nessa exposição da Funai para sua família, ou a dificuldade de colocar-se em um lugar que perturba, em especial naquilo que diz respeito ao mais gráfico da sobrevivência.

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Em sua conotação observacional, seria impossível negar o grafismo a A Invenção do Outro, e mesmo que essa fosse uma opção, isso influenciaria diretamente o realidade do filme, pois se trata de um documentário onde a morte é sempre e constantemente uma ameaça. Para além dos perigos imanentes do ambiente e dos muitos diálogos que citam os ataques matis, nenhum espirro ou tosse é ouvido sem preocupação e há a presença dolorida de Pereira em tela, lembrando ainda mais que ainda estamos vivendo um período de risco constante de invasão e extermínio. O cinema em tela muito bem captado e aplificado pelo extra tela.

A Invenção do Outro
Cortesia Festival de Brasília

Bruno Jorge, aliás, busca reflexos. Além de muito apuro estético, algo que a grandiosiodade da floresta facilita, e o pertinente sublinhar de certas passagens, ele aposta no reforço das contradições. Da masculinidade que se estabelece em conversas cheias de violência — e aqui podemos voltar a pensar no outro “inventado” — e da afetividade do encontro em demonstrações muito emocionadas, que, não por acaso, se incomodam com a postura alheia, é no desassossego de observar elementos que são imanentens a outra cultura — que não a nossa — que estamos presos; nessa eterna postura colonial que nos determina.

A Invenção do Outro é conhecer e reconhecer. Cinematograficamente é experimentar a descoberta do objeto e suas nuances, ir além do significado das imagens e contrapor sentidos. Contextualmente, é se perturbar com aquilo que achamos que sabemos e descobrir o que não temos ideia de existir. É mergulhar no profundo do Brasil e sentir o outro de uma maneira que não estávamos esperando, sem deixar de questionar. E é também sofrer com a realidade da destruição e o que de nefasto se instalou no país, causando perdas irreparáveis.

Um grande momento
O encontro

[55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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