Crítica | FestivalFestival de Berlim

Olhe pra Mim de Novo

(Olhe pra Mim de Novo, BRA, 2011)

Documentário
Direção: Kiko Goifman, Claudia Priscilla
Roteiro: Claudia Priscilla
Duração: 77 min

Durante o festival de cinema de Berlim, acontece tradicionalmente um encontro com todos os participantes brasileiros na Embaixada. Esse ano o podium não oferecia o atrativo dos últimos anos. Faltou a presença do diretor de Xingu, Cao Hamburger, substituído por Andrea Barata Ribeiro, uma das produtoras do filme. Ivo Müller, ator principal de Tabu, uma coprodução de Alemanha, França, Portugal e Brasil, também faltou nessa mesa quase técnica. De quebra, foram apresentados os dois participantes brasileiros do fórum para jovens cineastas, o Talent Campus.

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Mas o que realmente valeu a ida à Embaixada nessa terça-feira chuvosa e fria, foi Sillvyo Luccio, protagonista do filme Olhe pra Mim de Novo. Este talvez seja o filme mais leve de Kiko Goifman e, como me foi confirmado pelo próprio, essa leveza teria vindo de Claudia Priscilla e de sua maneira de tematizar a sexualidade. Na mesa, Sillvyo é o membro mais expressivo, mas expansivo. Quando toma a palavra, cativa, instiga e traz real conteúdo a esse encontro, com pouquíssimos participantes e ignorado quase por completo por jornalistas da imprensa brasileira.

Sillvyo fala daquilo que chama de “experiência traumática” quando se refere à reação da imprensa no último Festival de Gramado, quando um crítico de um grande jornal paulista teria sido ferrenho em cunho pessoal, atacando-o pessoalmente ao se referir à sua forma de andar, de falar e outros aspectos alheios à temática do filme.

>>>  Clique para ver um trecho do debate.

“Quando o Kiko (Goifman) me ligou dizendo que o filme havia sido escolhido em Berlim eu disse: ‘Ah, legal’, mas não reagi com aquela euforia tão típica do pessoal do Nordeste” e acrescenta: “…imagina, se na minha própria terra a reação já é assim, se eu for para a Alemanha o pessoal lá vai me chicotear!”, causando um riso sem graça na plateia.

Como surpreendido pelo sucesso do trabalho e quase se desculpando por esse lapso do acaso, Sillvyo completa: “Eu sempre fui na contra-mão. Nasci mulher, me sinto homem. Nunca imaginei que fosse protagonista de um filme. Eu sou formado em Letras, participei de movimentos políticos partidários. Nunca tive nada com o cinema”. “Quando a Priscilla me ligou, nós ficamos durante 2 meses conversando ao telefone antes de termos o nosso primeiro encontro e enquanto isso não aconteceu, eu ainda não levava fé…”

A diretora Priscilla acrescenta: “O Sillvyo roubou o filme, ele vai trilhando o caminho, conduz as entrevistas. Desenvolveu-se muito mais do que somente um protagonista. Foi um grande presente conhecê-lo e poder ganhar tanta coisa boa para o filme e para a nossa vida pessoal”.

Sillvyo Luccio, muito mais do que figura-magnética na tela do filme, é um ser humano de altíssima competência emocional. Dessas pessoas que sabem, em pouquíssimo espaço de tempo, acostumar-se a situações inusitadas. Um cearense de postura de cidadão do mundo. Sillvyo anda pelos corredores do Berlinale Palast, aprecia as fotos dos vários atores que tiveram seus filmes mostrados, elogia o frio e as “lindas mulheres berlinenses”. Um discurso sério e, ao mesmo tempo, empacotado de uma ingenuidade que o faz terno.

Por outro lado, sem papas na língua, Sillvyo fala da sua experiência como transgênero/transexual, nunca em tom egocentrista, mas sim como voz de um monte de gente que ainda continua escondendo suas verdadeiras identidades nos confins desse país territorial. O ranço de décadas de militarismo e o machismo, explícito e enrustido, ainda continua imperando, nos confins do Ceará, nos bares de Copacabana e, como se pôde constatar em Gramado, na mente de jornalistas, formadores de opinião e multiplicadores por excelência.

Como único membro da mesa com um senso de humor além do querer ser politicamente correto, Sillvyo quebra de vez o gelo diplomático e manda: “Um dia eu sonhei poder ter filhos e ser tratado com dignidade como um cidadão brasileiro. Sonhei muitas coisas….mas nunca sonhei vir para Berlim..” esboçando um sorriso descrente e arrancando sorrisos tímidos da platéia. “Eu acho que ainda não acordei, que ainda não percebi que eu estou na Alemanha, que eu estou convivendo com o povo que, para nós, como latinos, é o topo! Para mim é tudo lindo, tudo muito deslumbrante…”, confessa.

>>> Clique para ver a entrevista com Sillvyo Lucio.

O filme de Kiko Goifman não obterá em Berlim o caráter transcendente que, com certeza, terá no Brasil. A Alemanha, no centro da Europa, é um terreno privilegiado para pessoas de orientações sexuais das mais diferentes. Se existe um lugar no centro da Europa que é mundano, sexy e aberto para todos os tipos de preferências de vida, incluindo, claro, as opções sexuais, esse lugar é a cidade de Berlim, tradicionalmente abrigo para os desgarrados das convenções, para os sem destino, para os teimosos e para os ciganos.

Em nenhum outro lugar do velho continente existem mais gays assumidos em cargos de confiança e potenciais formadores de opinião como nessa cidade, iniciando pelo prefeito social-democrata, Klaus Wowereit; o segundo cargo no estado alemão, ministro das relações exteriores, Guido Westerwelle, e o diretor da mostra paralela Panorama”, Wieland Speck.

Não é a Alemanha e nem muito menos Berlim que precisam de tolerância e aceitação para a diferença. Mas com o respaldo da exibição na capital gay européia, junto com a reputação que o Festival de Berlim possui, o filme terá um caminho mais fácil em circuito nacional, além de ser mais provável que mais pessoas se sintam motivadas a ir ao cinema para conhecer esse cearense porreta cabra-macho sim senhor que tem muita história para contar.

A direção de Kiko e Priscilla é impecável, sensível exatamente por deixar o motor do documentário, Sillvyo Luccio sair arrancando, dando ao filme a originalidade perfeita sem, em qualquer momento, cair no lugar-comum de um olhar voyeurista pelo exótico e pelo “esquisito”.

Olhe pra Mim de Novo nos leva na bagagem desse road-movie com cenário natural de tirar o fôlego, nos mostra um Brasil escondido e, com isso, um pouco da história de cada um de nós.

Links

IMDb [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=x_51t1xkVRM[/youtube]

Fátima Lacerda

Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim e cobre o festival desde 1998. Formada em Letras no R.J e Gestão cultural na Universidade "Hanns Eisler", em Berlim é atuante nas áreas de Jornalismo além de curadora de mostras. Twitter: @FatimaRioBerlin | @CinemaBerlin
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